Sempre que se aproxima do Dia Internacional da Mulher, há uma grande movimentação por parte das companhias para promover alguma ação para comemorar a data. Algumas decidem dar uma rosa para todas as funcionárias, outras dão um batom, algumas até promovem um dia da beleza, com direito a maquiagem, massagem e tudo mais. Há também aquelas empresas que organizam rodas de conversas, palestras e outros tipos de discussão a respeito dos desafios impostos pela sociedade para as mulheres. Porém, o que raramente se contempla são as inúmeras possibilidades do que é ser mulher no mundo.
O que acontece na maior parte das vezes é uma padronização do gênero no tripé branca, cisgênero e jovem. E é justamente aí que mora o perigo. Porque quando pensamos apenas na mulher branca, jovem, cis, deixamos para trás uma infinidade de outras, afinal, onde estão as mulheres trans? E as mulheres velhas? E as mulheres negras? E olha que ainda assim essa lista que coloquei agora não abarca todas as possibilidades. Há que se pensar nas mulheres com deficiência, nas gordas, nas que não querem ser mães, nas que odeiam cosméticos, naquelas que romperam com todos os padrões ditos “normais” por essa sociedade que insiste em tentar nos colocar em caixinhas.
Dei um nó na sua cabeça, né? Eu sei. Afinal, é quase impossível contemplar as infinitas possibilidades de ser mulher no mundo e eu concordo contigo. Mas essa impossibilidade não pode ser paralisante a ponto de não nos deixar ir minimamente além daquilo que o status quo nos ensinou como sendo a única perspectiva para o gênero feminino.
Foi por um incômodo parecido com o meu que Kimberlé Williams Crenshaw, uma mulher negra, defensora dos direitos civis, norte-americana, nascida em 1959, cunhou o termo interseccionalidade. Kimberlé é uma das principais estudiosas da teoria crítica da raça. Ela é professora em tempo integral na Faculdade de Direito da UCLA e na Columbia Law School, onde se especializa em questões de raça e gênero.
Crenshaw foi responsável por introduzir e desenvolver a teoria interseccional, o estudo de como identidades sociais sobrepostas ou interseccionadas, em especial as identidades minoritárias, se relacionam com sistemas e estruturas de opressão, dominação ou discriminação.
Fico imaginando que Kimberlé olhava para os estudos sobre o feminismo e percebia que eles eram, em sua esmagadora maioria, a partir da perspectiva branca e rica e que foi daí que ela deve ter feito uma pergunta muito parecida com a minha: mas e as mulheres negras? E as mulheres pobres? E aí, minha mente fértil me leva a crer que ela deve ter concebido o estudo sobre interseccionalidade para contemplar essas sobreposições.
No Brasil, Carla Akotirene lançou o seu primeiro livro autoral intitulado “O que é Interseccionalidade?” em 2018. A publicação faz parte coleção Feminismos Plurais, elaborado pela filósofa Djamila Ribeiro. Nele, ela faz reflexões sobre o conceito de Interseccionalidade. Akotirene é uma militante, pesquisadora, autora e colunista sobre o tema feminismo negro no Brasil. Carla é professora assistente na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ela afirma: “O racismo é diferente do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Mas, frequentemente, eles podem se interligar criando complexas intersecções em que dois, três ou quatro eixos acabam se cruzando”.
Em um país como o Brasil, onde, conforme a PNAD Contínua de 2021 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do IBGE, 51,1% da população é composta por mulheres e o maior grupo populacional (28%) é formado por mulheres negras, é inconcebível que as marcas continuem a negligenciá-las nas suas estratégias em uma data tão importante como o Dia Internacional da Mulher.
Precisamos trazer para a mesa discussões sobre a empregabilidade de mulheres negras, mulheres trans e mulheres com deficiência. Um estudo feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) baseado nos indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), realizada pelo IBGE, entre os segundos trimestres de 2019 e 2022, mostrou que as mulheres negras são as que mais sofrem para entrar no mercado de trabalho. Enquanto a taxa de desemprego geral ficou em 9,3% no segundo trimestre deste ano, entre as mulheres negras o indicador ficou em 13,9%. Já entre os homens negros a taxa é menor que taxa nacional: 8,7%. Entre as mulheres brancas, o desemprego constatado foi de 8,9%; e os homens brancos, 6,1%, a menor taxa entre os grupos. Comparando com os mesmos períodos de 2019 a 2022, é possível ver que as mulheres negras têm a maior taxa de desocupação em todos os trimestres. E os homens brancos mantêm as menores taxas de desocupação entre os grupos.
Um outro tema que é necessário abordar no Dia Internacional da Mulher é a violência contra as mulheres trans. O Brasil ainda continua encabeçando a lista dos países que mais matam pessoas trans no mundo. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2021 aconteceram no nosso país pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e 5 casos de homens trans e pessoas transmasculinas. Isso nos mostra que novamente as mulheres são as que mais morrem.
Quando pensamos nas mulheres com deficiência, há um dado muito importante para abordarmos nessa data: por dia, 7 mulheres com deficiência sofrem violência sexual no Brasil, conforme levantamento. E mais, 54% dessas vítimas são negras e, em 34% dos casos, o sexismo foi a motivação. Esses dados são do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
Diante de tantos dados e fatos, não podemos continuar tendo uma visão míope, considerando apenas uma perspectiva do que vem a ser a vivência das mulheres. Portanto, se você quer fazer bonito nesse 8 de março, considere as interseccionalidades. Elas nos direcionam para um mundo de outros atravessamentos e ampliam o nosso olhar sobre o existir feminino.