Trago aqui um breve relato de minha simples história: a vida esculpida com resiliência, coragem, alegria e amor. A história de uma menina com deficiência que se fez professora.
Sou a quarta filha de uma família de migrantes nordestinos que próximo a meados da década de 1970 foi para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Meu pai foi desde agricultor à servente de pedreiro, até metalúrgico. Fazia o que podia para sustentar os quatro filhos, pagar aluguel e demais despesas. Em nossa casa, quando havia para refeição sardinhas em lata era um banquete!
Minha mãe, humilde cultural e financeiramente, costurava, lavava roupas e fazia outras atividades para colaborar com meu pai na renda de casa. Ainda, cuidava de mim, com problemas de saúde e deficiência física, e de meus irmãos pequenos.
Passei a maior parte de minha infância hospitalizada. Com quase três anos de idade, um ano após nossa ida para São Paulo, tive hepatite. Três meses depois, surgiram sintomas como dores articulares e dificuldades para me movimentar. Aos seis anos, fui diagnosticada com Artrite Reumatoide Infanto-Juvenil.
Inclusão na escola
Não foi fácil encontrar escola, pois, na época, as escolas não aceitavam a matrícula de pessoas com deficiência, sequer havia base legal de amparo. Também, eu ficava muito tempo internada, tinha dificuldades para caminhar e não possuía cadeira de rodas.
Foi tanta insistência que, enfim, uma diretora aceitou meu ingresso. Ingressei na escola aos nove anos e ir à escola, mesmo com inúmeras dificuldades, era uma felicidade enorme.
O espaço era um barracão de madeira e tinha 30 degraus. Eu os subia e os descia de joelhos, sentada ou carregada por minha mãe.
Seis meses depois, mudamos para um prédio novo que, apesar de distante da minha casa, não tinha degraus. Faltava muito às aulas, pois precisava fazer fisioterapia.
Às vezes, eu não tinha como ir até a escola, pois não havia dinheiro para pagar o transporte. Tinha apenas uma cadeira de madeira com rodinhas de rolimã feita pelo meu vizinho. Em virtude das impossibilidades, estudei sozinha diversas vezes, sem professor ou auxílio de alguém. O que me auxiliava muito nos estudos e ajudou a despertar meu desejo de voar alto foi o habito de meu pai que, mesmo com pouco dinheiro, sempre comprava livros quando alguém lhe oferecia.
Início da jornada pedagógica
Quando cursava a 7a série e podia ir à aula, eu precisava ir duas ou três horas mais cedo para pegar carona com um vizinho. Durante esse tempo, eu permanecia na biblioteca da escola, ajudando algumas crianças a fazerem suas lições de casa ou a estudarem.
Mais tarde, minha vizinha pediu para que eu desse aulas para sua filha. Assim, fui me aperfeiçoando e trabalhei como professora de educação infantil, na alfabetização de adultos, no reforço escolar e como orientadora. Aprendi ensinando, ensinei aprendendo e continuo fazendo isso até hoje.
Sou professora, mestre e doutora em Educação, além de professora e coordenadora de um programada de pós-graduação em uma universidade pública. Leciono, ministro cursos de extensão, escrevo artigos, livros e oriento estudantes no mestrado e doutorado. Até o momento, publiquei 6 livros e outros 15 em parceria.
Pertencimento social
Ao mesmo tempo em que escola é a primeira porta para a liberdade, ela também é o lugar onde se encontra as primeiras barreiras, uma vez que as unidades escolares nem sempre possuem acessibilidade arquitetônica, curricular, pedagógica, sensorial ou atitudinal. Chegar e permanecer na escola é a primeira das grandes batalhas para pessoas com deficiência.
Pensando nisso, falar sobre empoderamento e a ascensão social da mulher com deficiência é motivar e possibilitar a outras mulheres que novas oportunidades ocorram. Que o navegar por novos mares seja possível na vida dessas pessoas. Promover acessibilidade e atitudes coerentes e não capacitistas é um anseio e uma luta contínua.
Na sociedade, nas famílias e até mesmo no ambiente de ensino, muitas atitudes precisam ser ressignificadas. Para isso, se faz necessário o compartilhamento de informações, as formações continuadas e um diálogo franco, aberto e despido de preconceitos. Esses passos possibilitam que as mulheres se empoderem e ocupem lugares de pertencimento e crescimento humano, econômico e social.
Desde que tenho consciência de minha expressão humana, reconheço que somente o conhecimento e a educação nos possibilitam abrir portas e encontrarmos novos horizontes.
Aprender sobre novas perspectivas, novas liberdades e possibilidades é aprender sobre construir e habitar novos mundos, para habitar nosso próprio mundo com o outro. É ter um mundo nosso, no qual pertencemos, coexistimos, construímos muitos outros mundos.
Contribuição para a sociedade
Hoje, enquanto a pessoa com deficiência, escritora, palestrante e professora, levanto a bandeira do “sejamos nós mesmas, singulares, potentes, legítimas e legitimadas”. Tudo sobre nós, conosco!
Busco quebrar os rótulos e atitudes que nos exclusão, mostrando que todos nós somos partes de uma tessitura: a Teia da Vida. Em meus projetos, busco favorecer rupturas de paradigmas e preconceitos, a valorização da solidariedade e o respeito, fazendo da diversidade a força motriz vital para a eliminação de barreiras, bem como a promoção do desenvolvimento de sujeitos e ambientes mais criativos, resilientes, solidários, cooperativos, felizes e fomentadores da autoria de pensamento.
Meu desejo é o de que possamos habitar todos os lugares com nossa presença forte e vibrante, traçando e construindo nossa própria caminhada emancipadora e construtora de uma sociedade equânime, com mais justiça, liberdade e dignidade social. Isso não só para mim, mas para todas as pessoas com deficiência, para que sejamos reconhecidas como singulares e únicas. Que tenhamos reconhecidas nossas singularidades, possibilidades e potencialidades e até mesmo nossas fragilidades. Que possamos ser autênticas e acreditarmos em nós mesmas.
Sobre o autor
Maria Dolores Fortes Alves é professora doutora em Educação mestre em Educação, mestre em Psicopedagogia e pedagoga