Nas últimas décadas, os termos ética e moral têm sido tema de discussões em todas as áreas da atividade humana e, muitas vezes, são encarados como sinônimos. Diferenciar, primeiramente, o caráter de cada um é tarefa fundamental para o desenvolvimento de uma educação cidadã que pretende formar os estudantes para as demandas reais da sociedade.
Muito além de uma significação generalizada de respeito e ordem, Yves de La Taille, psicólogo francês, em entrevista exclusiva à Linha Direta Digital, ressalta a origem das duas palavras: ética vem do grego, e moral, do latim. Para o professor, entre as diferenciações possíveis, uma é restringir a palavra moral ao âmbito privado e resguardar a palavra ética para o âmbito público. É por isso que se fala em código de ética e não em ética familiar, por exemplo. Outra diferenciação que La Taille emprega, por ser útil do ponto de vista psicológico, é definir moral dizendo respeito a deveres, portanto a regras, como justiça e honestidade, e usar a palavra ética como fazia Aristóteles, para se remeter à vida boa. Portanto, viver uma vida de consumismo pode ser uma opção no plano ético, por exemplo. Já a moral tem a função de regular. Então, se o preço a pagar pelo consumismo for a desonestidade, a falta de solidariedade, ignorando totalmente os problemas da sociedade, aí a moral diz não. Mas, segundo o professor, hoje em dia, na sociedade, a grande preocupação está mais com a dimensão normativa, das regras; em geral, é nesse sentido que se definem a moral e a ética.
Yves de La Taille é professor titular aposentado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É especialista em Psicologia do Desenvolvimento e realiza pesquisas na área de Psicologia Moral, tendo publicado diversos artigos, capítulos de livros e livros sobre o tema. Seu livro Moral e ética, dimensões intelectuais e afetivas recebeu o prêmio Jabuti em 2007. Confira na íntegra a entrevista!
Alguns estudiosos definem como uma característica da pós-modernidade a crise nos valores morais e éticos. Na realidade, estamos expostos, diariamente, a todos os tipos de violência, reais e virtuais – a exemplo do bullying, tão presente no ambiente escolar. Como você analisa o futuro em uma perspectiva da moral e da ética?
Para responder a essa pergunta, vou me remeter ao livro que publiquei há exatos 10 anos, Formação ética: do tédio ao respeito de si, retomando a diferenciação que eu uso entre moral e ética. Se existe uma crise clara hoje – e eu não sou o único a dizer isso, nem o primeiro –, a crise maior da sociedade contemporânea é ética, no que diz respeito ao sentido da vida, que está fraco. Por isso que eu chamo a sociedade atual de uma sociedade do tédio. Bauman fala na sociedade da liquidez, que, em outras palavras, é uma sociedade onde temos carência de sentido. No progresso, ninguém mais acredita muito, o passado é desvalorizado, o meio ambiente nos trará cataclismos, se as previsões forem corretas, o consumo não satisfaz. Isso explicaria, por exemplo, para além de condições econômicas, o aumento da violência. Pesquisas mostram que muitos meninos entram na violência não pelo dinheiro, porque eles sabem que não vão ganhar muito mesmo, mas para ter sentido na vida, um jeito de estar na sociedade, de ser visível. A violência inclusive tem uma característica interessante, pouco lembrada: ela é impaciente. Quem é violento quer um efeito imediato, e para dialogar, ser democrático, é preciso ter paciência, ter fé de que um sentido pode ser construído.
No que diz respeito ao futuro, eu diria que sou mais pessimista do que otimista, porque não estou vendo pistas de melhoras, e aparecem mais coisas no sentido da repressão. Nada contra medidas repressivas, elas são inevitáveis; mas não há o outro lado, a educação. Eu diria que, para ter um projeto de combate à violência, o Ministério da Educação é incontornável, o Ministério dos Direitos Humanos é incontornável. No entanto, o meu lado otimista faz uma análise de que, dentro do aspecto histórico, a sociedade frequentemente entra no inferno, mas acaba saindo de lá também.
Inflexibilidade, autoridade e rigor são muitas vezes tomados como atitudes de controle capazes de estabelecer um clima de respeito e pacificidade. Na sua opinião, essas atitudes são fundamentais? Até que ponto são úteis?
Em linhas gerais, eu diria que é preciso fazer a distinção entre autoridade e autoritarismo. Este diz respeito ao uso da força, do castigo, do controle, que é inevitável, mas que em geral não é benéfico ao desenvolvimento moral das pessoas. O melhor é a autoridade, que podemos relacionar a uma pessoa que tem ascendência sobre o outro. Por exemplo, você pode pensar em alguém que é uma autoridade em física ou em química, então você não ouve o que ela diz porque ela vai te castigar se por acaso você não concordar com ela, mas porque ela tem argumentos, convence alguns e acaba sendo uma pessoa respeitada e frequentemente seguida. O essencial para a educação moral é, por um lado, as relações de autoridade, e não de autoritarismo, além de um ambiente escolar moral. O autoritarismo é, para alguns, a porta de entrada, e eu penso que hoje em dia está na moda falar muito em colégios que em geral trabalham com a norma rígida, mas são pobres do ponto de vista do desenvolvimento moral. E há tantas pesquisas, tantas reflexões morais, desde a Grécia Antiga, sobre moralidade que realmente é uma pena ver algumas pessoas reduzindo a moral a uma obediência passiva, sem reflexão, a normas rigidamente controladas.
É relativamente natural que os adolescentes estejam sempre testando os limites dos pais em casa, ou dos professores, na escola. Como separar o que é indisciplina do que é desrespeito?
Vamos dar um exemplo: eu sou adolescente, o professor me diz que vou ter que entregar uma redação sobre um tema X na sexta-feira, e digamos que estejamos na quinta-feira. Eu, como estudante, posso dizer: “me desculpe, eu não vou fazer porque nesse prazo eu não tenho como entregar”. Isso é indisciplina no sentido de que eu não obedeci a uma ordem de um professor, mas eu o tratei muito bem. Repare que as frases que eu usei são bem respeitosas, ou seja, eu não dei legitimidade ao lugar de autoridade para esse professor que me obriga a fazer uma coisa que eu acho que eu não tenho como fazer, mas eu não desrespeitei a pessoa. Para pensar a questão do respeito, um conceito essencial é a dignidade. É preciso respeitar a dignidade da pessoa, o que não significa concordar, nem obedecer. Existe inclusive o que se chama de desobediência civil: as pessoas desobedecem porque consideram algumas leis injustas, mas respeitam as pessoas. Já o desrespeito ocorre quando você fere a dignidade do professor, inclusive de maneira intencional, evidentemente. Quando eu agrido verbalmente o professor, eu o desrespeito; não assumir ou não obedecer é indisciplina. Não significa que indisciplina seja justificável. Infelizmente, essas coisas andam bem juntas, você desobedece e agride ao mesmo tempo, isso é bem típico da cultura do tédio.
No tocante à relação família e escola, existe um dilema antigo acerca da responsabilidade sobre a formação dos educandos no que diz respeito aos aspectos comportamentais ligados à moral e à ética. Nesse sentido, até que ponto é papel da família e até onde é papel da escola essa construção do caráter humano?
Quem em geral defende que a educação moral é essencialmente responsabilidade da família são as culturas religiosas. Por quê? Como a escola é laica, a influência religiosa ganha mais entrada na educação familiar. Outra coisa: essa discussão é muito antiga, e grandes autores, como Durkheim e Kant, dizem que a família é insuficiente. Na minha posição, elas são complementares, pois o grande problema das relações morais é no espaço público, não na família. Nesse sentido, a família é fraca para ensinar o convívio no espaço público. Além do mais, sejamos coerentes, que família é essa? Antigamente, família era um clã inteiro; hoje, ela é nuclear: o pai, a mãe e uma ou duas crianças. A escola é fundamental e tem falhado lamentavelmente nessa tarefa. Tanta violência, como se observa hoje, resulta também de escolas que não fazem nada, fecham os olhos.
Muito se tem debatido sobre a inserção da Educação Moral e Cívica (EMC) como disciplina no currículo escolar, na tentativa de valorizar a educação para a cidadania. Essa iniciativa pode despertar uma nova consciência nos alunos acerca de suas responsabilidades na sociedade e até mesmo contribuir para um clima mais favorável de respeito e de paz?
A Educação Moral e Cívica, se for entendida como na época da ditadura militar, uma matéria ministrada uma vez por semana, no 3º ano do Ensino Médio, é a mesma coisa que você achar que pode ensinar matemática uma vez por semana na mesma etapa. É possível ter um curso de moral e cívica, mas tem que começar na pré-escola e ir até a faculdade, é um trabalho constante. Ao invés do termo Educação Moral Cívica, eu colocaria Formação Moral e Ética. O fundamental é que, antes de se pensar em matéria, professor, aluno, é preciso fazer de tudo para que o ambiente de convívio na escola, privada ou pública, seja coerente com o que diz a moral . Por exemplo: algumas escolas falam muito de aluno, muito de professor, e não falam de funcionários, como se eles não existissem, não fizessem parte da comunidade. Problema moral, como não? O trabalho deles é imprescindível. Eu ensino, a outra pessoa aprende, mas também há a pessoa que limpa o chão. O ambiente tem que ser respeitoso e, na medida do possível, também democrático. Outro ponto é o que se chama de transversalidade, ou seja, cada disciplina vai abordar do seu jeito os aspectos da moral e da ética. Por exemplo, a discussão do meio ambiente hoje é uma questão moral, porque questiona o legado que vamos deixar para nossos filhos e netos e o modo como as pessoas são preparadas para cuidar do planeta. Quer tema melhor para uma aula de biologia ou de geografia?
Porém, a moral e a ética como matéria, se isso não for pesado demais na grade curricular, poderia ser uma vez por mês, por bimestre. E não seria para explicar o que se deve fazer um bom menino ou uma boa menina, mas para trazer reflexões ricas, que sejam compreensíveis, textos de Aristóteles, Platão, Kant, Durkheim e outros, como o brasileiro Paulo Freire. Algo inteligente e que dê sentido, pois é isso que falta muito na sociedade de hoje. A moral e a ética são portadoras de sentido, desde de que sejam ensinadas como busca dele, e não apenas como matéria a ser decorada.
Com base nesse debate, quais políticas públicas você apontaria como efetivas para melhorar, de fato, a educação para a cidadania?
Uma política pública que primeiro se preocupasse com essa questão da formação moral e ética. Que tivesse à frente da gestão pública em educação uma pessoa responsável, que obrigasse a escola a fazer isso, ou seja, a meta não é só passar no Enem, ensinar matemática ou português, embora isso seja fundamental e muito problemático no Brasil, mas a construir o cidadão de maneira completa. Inclusive, gasto algumas páginas do meu livro, que citei no início desta entrevista, para falar de um valor que parece não ter relação com moral e ética, mas tem – o valor verdade. Hoje em dia, observo que esse valor está deveras enfraquecido. As fake news muitas vezes são mal-intencionadas, mas as pessoas passam essas informações para frente como algo que é dito sem questionamento. Eu até costumo dizer aos educadores que eles têm um problema: eles ensinam as respostas, mas não ensinam as perguntas e, muitas vezes, o sentido está na pergunta, não na resposta. Somente o entendimento da pergunta permite avaliar a justeza da resposta.